O início de “O crime do Cais do Valongo”, segundo romance de Eliana Alves Cruz, autora do premiado “Água de barrela”, é um clássico das tramas policiais. Nos tempo de Dom João VI, o corpo de um próspero negociante da região do Valongo é achado em uma ruela carioca. A partir daí, a história se desenvolve, pistas vão sendo deixadas e a narrativa, habilmente construída, circula naquela encruzilhada entre a História e a ficção que pode nos fazer cair na tentação de enquadrar o livro como um romance histórico-policial. Acontece que “O crime do Cais do Valongo” é muito mais do que isso.
Narrado a partir das vozes de dois personagens, o livreiro mestiço Nuno Alcântara Moutinho e a moçambicana escravizada Muana Lomué, o romance apresenta um relato poderoso, cheio de sutilezas. É o cotidiano de um Rio marcado pelo horror da escravidão e, ao mesmo tempo, pela potência da cultura das ruas e da incessante reconstrução de sociabilidades produzidas pelas descendentes de africanas e africanos sequestrados do lado de lá do Atlântico.
Há quem possa ver no romance influência do realismo fantástico. Parece-me limitado ler o livro a partir dessa referência. O que a autora faz é dominar com maestria os códigos de percepção de mundo dos subalternizados, entendendo a ancestralidade, o corpo mítico como modelador de condutas e os procedimentos de ligação entre o visível e o invisível, expressos em toda a sorte de mandingas, como componentes da sofisticada cosmogonia e dos modos de invenção da vida dos povos saídos das Áfricas. A tragédia da diáspora, afinal, também é um empreendimento inventivo de rara potência.
Outro mérito poderoso do livro reside na apresentação de uma África pouquíssimo vista nas nossas letras: aquela da parte oriental do continente. A unidade portuguesa já é uma ficção. Minhotos, trasmontanos, beirões, alentejanos, algarvios, estremenhos, ribatejanos, açorianos e madeirenses — que normalmente não se encontrariam nem em Portugal — aqui se encontram e redefinem dinamicamente suas culturas, entre violências tantas e afetos vários, no contato conflituoso e/ou negociado com negros que não se viam como africanos, mas como membros de sua aldeia: mandingas, bijagós, fantes, achantis, gãs, jalofos, fons, guns, baribas, gurúnsis, quetos, ondos, ijebus, oiós, ibadãs, benins, hauçás ibos, ijós, calabaris, teques, bamuns, ijexás, anzicos, congos, andongos, songos, pendes, lenjes, ovimbundos, nupês, ovambos, macuas, mangajas, e outros tantos.
Não se imagine, todavia, que o livro caia no didatismo rasteiro que prende a narrativa com âncoras pesadas. A história é fluente, extremamente bem contada, mescla figuras reais — como o Intendente Geral e a cantora lírica Joaquina Lapinha — com inventadas, mergulha nas notícias da “Gazeta do Rio de Janeiro” e transforma a cidade em personagem fundamental da trama.
A cidade cindida pela Pedra do Sal, que tentou afastar da Corte o horror do comércio negreiro feito pelas bandas do Valongo, é também a cidade cerzida por aqueles que tiveram a sua humanidade negada pela coisificação e o sequestro.
Um livro escrito por uma autora negra, com protagonistas negros e contado a partir dos saberes afro-cariocas, já seria importante em um país em que o mercado editorial reproduz nossa desigualdade gritante. Além disso, “O crime do Cais do Valongo” é literatura da melhor qualidade e firma Eliana Alves Cruz como uma voz poderosa e contundente da literatura brasileira. Como diz em certo trecho a protagonista Muana, “uma mulher do meu povoado jamais poderia deixar seus antepassados de lado”. A literatura de Eliana faz exatamente isso.
* Luiz Antonio Simas é escritor, historiador e colunista do GLOBO
“O crime do cais do valongo”
Autor: Eliana Alves Cruz
Editora: Malê
Páginas: 202
Preço R$ 42
Texto: jornal O Globo.