Terceiro Ato e a Justiça

 

‘Abdias Nascimento, 1970’ no terceiro ato da exposição “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”. 2023. Foto: Maria Eduarda Nascimento.

Por Maria Eduarda Nascimento*

Da minha mãe de santo escutei certa vez que não devemos pedir justiça a Xangô, mas sim por misericórdia. Isso porque, a visão de justiça africana nada tem a ver com os dogmas eurocêntricos e suas leis, e eu, no auge da minha ignorância, posso pedir por justiça estando equivocada, e não por isso ele a deixará de fazer. 

Esse estudo de Abdias Nascimento, que faz parte de um dos núcleos do “Terceiro Ato: Sortilégio”, revela uma faceta muito pessoal a respeito do que ele pensava como futuro ideal de uma pátria martirizada, vítima do que a escravização instaurou aqui. O Oxé de Xangô e os rabiscos da canetinha foram capazes de reler uma bandeira de bases colonialistas em uma proposição africana de futuro com justiça aos negros que construiram um país em cima dos escombros da desgraça e da exploração. E que até hoje ainda assim o carregam. 

Teria então a branquitude coragem de pedir justiça a Xangô? Se é do suprimento e esquecimento de nossa história que somos mantidos em condições de controle e apagamento, como a consciência da nossa exploração os beneficia? O melhor mesmo seria a misericórdia. O que se sabe é que dos estudos de Abdias sobre a releitura da bandeira nacional foi concebido “Oke Oxossi (1970)”, que coloca o caçador africano no centro, e nos traz a esperança de um futuro de fartura e sobrevivência. 

E como o negro é lindo! Por que durante minha vida não me ensinaram isso? Para onde se olhava dentro da Galeria Mata, se via beleza. “Oxum em Êxtase (1975)” costuma ser o quadro que mais atrai olhares, e lá estava ela, disposta no centro da parede ao lado de outros orixás. A Iyabá foi tão fielmente retratada na pintura que concentrou toda a atenção e fotografias do local. Não poderia ser diferente. Senhora dos rios e cachoeiras, riqueza, e vaidade. A pintura de Abdias traduz autoestima e afirmação da própria “negrura” – como ele mesmo escreveu. Como ver beleza no que se aprendeu a odiar? Como amar a um orixá a quem me apresentaram como diabo? A autoestima é o resgate da integridade do povo preto, da noção de humanidade que nos foi negada antes mesmo da colonização. 

É possível visualizar de forma concreta o que Abdias Nascimento idealizou para o Museu de Arte Negra na década de 50, como a transmissão da criatividade afro-brasileira e da estética negra. Atento para a importância da memória porque é preciso difundir no imaginário social que Abdias enquanto vivo se dedicou a valorização do negro como sujeito, como central e produtor de arte. Destaco também a decisão essencial de inserir documentos históricos, fotos e livros para compor a narrativa da exposição, que não só é inédita na história do Inhotim, mas também possibilita espaço para acessar sentimentos. 

A admiração especial de Abdias Nascimento ao orixá Exu é um deles. Representado em maior número em quadros, estudos e simbologias, Exú está por todo lado. Vou além, enxergo o axé do orixá incorporado em seu trabalho. O que foi Abdias se não um comunicador entre mundos? Falou ao negro, ao africano, ao branco e ao originário. Falou ao artista, à empregada doméstica; falou ao patrão, ao rico e ao pobre. Falou ao jovem, ao quilombola, ao griot. 

Falou comigo.

Maria Eduarda Nascimento em visita a exposição no Inhotim. Crédito: Julio Ricardo  Menezes Silva