Em 13 de outubro de 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN) foi fundado, no Rio de Janeiro, por iniciativa do professor Abdias Nascimento (1914-2011), com o apoio de amig@s e intelectuais brasileiros. A proposta de ação da companhia era valorizar socialmente a herança cultural, a identidade e a dignidade do afro-brasileiro por meio da educação, da cultura e da arte. Umas das ações mais simbólicas do grupo foi a realização de aulas para alfabetização dos participantes do grupo de teatro (Foto: acervo IPEAFRO).
“Resolvi tentar meu teatro negro no Rio de Janeiro. A primeira reunião foi no café Amarelinho, na Cinelândia: Aguinaldo Camargo, o pintor Wilson Tibério, Teodorico dos Santos, José Herbel.”
– Abdias Nascimento
A Seção TEN do acervo contém documentos do Teatro Experimental do Negro (TEN). Criado em 1944, o TEN foi idealizado, fundado e dirigido por Abdias Nascimento, com o objetivo de valorizar o negro e sua cultura através do teatro.
A proposta de ação do TEN englobava cidadania e conscientização racial. Ao recrutar seu elenco, o TEN tinha, como público alvo, pessoas oriundas do operariado, empregadas domésticas e pessoas sem profissão definida.
“O recrutamento das pessoas era muito eclético. Queríamos gente sem qualquer tarimba, pois tarimba de negro no teatro se restringia ao rebolado ou às palhaçadas. Veio gente humilde, dos morros.“
– Abdias Nascimento
O TEN realizou cursos de alfabetização para que seus integrantes pudessem dominar a leitura para poder ensaiar. Os cursos noturnos abordavam também conhecimentos gerais e culturais. As aulas aconteciam no restaurante do prédio da UNE na Praia do Flamengo e eram coordenadas por Abdias Nascimento e ministradas por ele, Ironides Rodrigues e Aguinaldo Camargo.
“A um só tempo, o TEN alfabetizava seus primeiros participantes e oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-brasileiro no contexto nacional.“
– Abdias Nascimento
Na hora de escolher uma peça para sua estreia, e verificando a ausência de textos na dramaturgia brasileira que atendessem aos seus objetivos, Abdias Nascimento recorreu à obra O imperador Jones, do renomado dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill. Em 1945, O’Neill cedeu gratuitamente ao TEN os direitos para encenar sua peça, em tradução de Ricardo Werneck.
Após meses de ensaio, o TEN estreou com O imperador Jones no dia 8 de maio de 1945, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, tendo como protagonista o grande ator Aguinaldo Camargo.
Para além da dramaturgia como meio de conscientização do negro, o TEN desempenhou atividades de caráter social e artístico. Assim, a atuação do TEN alcançou outros palcos, revelando a militância e o engajamento feminino nas lutas contra a discriminação. A atuação das mulheres foi uma base importante de suas realizações.
Arinda Serafim, Elza de Souza, Marina Gonçalves, Ruth de Souza, Ilena Teixeira, Neusa Paladino, Maria d’Aparecida, Mercedes Baptista e Agostinha Reis estão entre as mulheres que participaram desde os primeiros momentos do TEN. Muitas delas eram empregadas domésticas, e lideravam a defesa de seus direitos. A advogada Guiomar Ferreira de Mattos atuava intensamente nessa causa.
Duas organizações de mulheres negras fizeram parte do TEN: a Associação das Empregadas Domésticas e o Conselho Nacional de Mulheres Negras.
“Teve muita “madame” que se aborreceu com o TEN: nós estávamos botando minhocas nas cabeças de suas empregadas.“
– Abdias Nascimento
Com sua coluna “Fala a Mulher” no jornal Quilombo, órgão informativo do TEN, Maria de Lourdes Valle do Nascimento teve presença destacada na luta das mulheres contra a discriminação. Ela idealizou também o Ballet Infantil do TEN.
O jornal Quilombo integrava uma imprensa negra que vinha ativa, sobretudo em São Paulo, de longa data. Porta-voz dos afrodescendentes, o periódico funcionava como espaço de denúncias de discriminação e apoiava organizações afro-brasileiras em todo o Brasil, publicando entrevistas com seus líderes e divulgando suas atividades.
Em outra cena, o TEN criticou o conceito de beleza nos certames como o de Miss Brasil:
“Nesses concursos jamais foi constatada a presença de uma candidata de cor. Todas elas eram brancas, dentro dos melhores e mais exigentes moldes da Vênus de Milo”, observou o colunista Doutel de Andrade em 1948.
No intuito de restituir a autoestima negada às mulheres negras, o TEN promoveu os concursos “Boneca de Pixe” e “Rainha das Mulatas”. Os critérios de julgamento incluíam o talento criativo, os dotes intelectuais e a postura ética da candidata. Mas com o tempo, ficou difícil manter o padrão de seriedade que exigia a intenção pedagógica dos concursos. À medida que os eventos cresceram, a mídia e o público passaram a desvirtuar essa intenção, e o TEN suspendeu os concursos.
“Houve críticos esquerdistas fazendo confusão dos concursos com exploração meramente sexual da mulher negra. Essas pessoas não compreendiam, não podiam compreender a distância que nos separava qual uma linha eletrificada, de tais preocupações. Pois o alvo desses concursos era exatamente pôr um ponto final na tradição brasileira de só ver na mulher negra e mulata um objeto erótico, o que vem acontecendo desde os recuados tempos do Brasil-Colônia.“
– Abdias Nascimento
Mais tarde Léa Garcia, Marietta Campos, Milca Cruz, Dulce Martins, Heloísa Helô, Estela Delfino, Thereza Santos e outras mulheres deram continuidade à atuação cênica e social do TEN.
Em 1955, o TEN promoveu a Semana do Negro e no mesmo ano, o concurso de artes plásticas sobre o tema do Cristo Negro. Em 1961, publicou a antologia Dramas para negros e prólogo para brancos, e em 1964 realizou o curso Introdução ao Teatro Negro. Sua atuação se destacou no cenário cultural do Rio de Janeiro até 1968, quando, após a primeira exposição da coleção Museu de Arte Negra, Abdias Nascimento permaneceu no exterior em razão da repressão política. Os livros Teatro Experimental do Negro – Testemunhos, O negro revoltado, e Relações raciais no Brasil registram boa parte da atuação do TEN e seu contexto social.
A seguir, você pode conhecer de forma mais detalhada alguns aspectos dessa atuação do TEN e de sua história, documentados nos registros do acervo do Ipeafro que vimos apresentando por meio de nosso Acervo Digital.
Antecedentes do TEN – Santa Hermandad Orquídea
No final da década de 1930, criou-se no Rio de Janeiro o grupo Santa Hermandad Orquídea, formado por seis poetas e artistas: os argentinos Godofredo Iommi, Efraín Tomás Bó e Raúl Young; e os brasileiros Gerardo Mello Mourão, Napoleão Lopes Filho e Abdias Nascimento.
Em 1941, a Santa Hermandad Orquídea embarcou para o Amazonas e seguiu viagem pela América do Sul. Em sua passagem pelo Peru, Abdias e seu grupo assistiram ao espetáculo O imperador Jones, de Eugene O’Neill, no Teatro Municipal de Lima, capital daquele país. O ator branco argentino Hugo D’Evieri, do Teatro Del Pueblo de Buenos Aires, fazia o papel do protagonista principal, pintado de preto.
Para Abdias, um ator branco fazendo o protagonista negro simbolizava o racismo que excluía o negro do teatro não apenas ali em Lima, mas no teatro como um todo, símbolo e representação da própria civilização do Ocidente. Ele decidiu então criar, na volta ao seu país, um teatro negro, como forma de denunciar e lutar contra o racismo e valorizar a cultura de origem africana. Seguindo viagem, ele passou um ano em Buenos Aires, no Teatro Del Pueblo, onde aprofundou seu conhecimento e se engajou numa prática intensiva de teatro.
Antecedentes do TEN – Teatro do Sentenciado (Carandiru)
Condenado à revelia por ter resistido à discriminação racial em incidentes anteriores à sua viagem pela América do Sul, Abdias Nascimento foi preso em 1942 ao voltar para São Paulo. Cumprindo pena na Penitenciária do Carandiru, resolveu pôr em prática seu projeto de criar um teatro.
Abdias levou a sugestão ao diretor da penitenciária, Dr. Flamínio Fávero, que concordou com a ideia e o autorizou a executá-la. Criou-se, então, o Teatro do Sentenciado, um projeto de vanguarda para a época, onde os presos criavam e encenavam seus próprios textos.
Atuação Teatral do TEN
O TEN marcou de forma indelével a história do teatro brasileiro ao promover a valorização da identidade negra na dimensão cultural, histórica, étnica e artística. O estudo e a reelaboração criativa dos valores da cultura de matriz africana no Brasil moldaram a atuação artística do TEN, que era sempre acompanhada do ativismo cívico pela democracia e os direitos humanos.
“Na rota dos propósitos revolucionários do Teatro Experimental do Negro vamos encontrar a introdução do herói negro com seu formidável potencial trágico e lírico nos palcos brasileiros e na literatura dramática do país.”
– Abdias Nascimento
Além de encenar peças de teatro com uma qualidade plástica e dramática muito elogiada pela crítica da época, o TEN incentivou a criação de uma dramaturgia de autoria negra e sobre temas da vida do povo de matriz africana.
Peças encenadas
O imperador Jones, de Eugene O’Neill
Todos os filhos de Deus têm asas, de Eugene O’Neill
Festival do II aniversário do TEN
O moleque sonhador, de Eugene O’Neill
Recital Castro Alves
Calígula, de Albert Camus
O filho pródigo, de Lúcio Cardoso
Ato Poético Cruz e Souza
Aruanda, de Joaquim Ribeiro
Filhos de santo, de José de Moraes Pinho
Rapsódia negra, de Abdias Nascimento
Onde está marcada a cruz, de Eugene O’Neill
Sortilégio (mistério negro), de Abdias Nascimento
O sapo e a estrela, de Hermilo Borba Filho
Atuação política do TEN
Em 1945, o TEN organizou a Convenção Nacional do Negro Brasileiro, que teve sua primeira reunião em São Paulo e a segunda em 1946 no Rio de Janeiro.
A Convenção Nacional do Negro Brasileiro lançou, em 1945, o Manifesto à Nação Brasileira, reivindicando que a nova Carta Magna explicitasse a origem étnica do povo brasileiro, definisse o racismo como crime de lesa-pátria e punisse a sua prática como crime.O Manifesto também demandou políticas positivas de igualdade racial, como bolsas de estudos e incentivos fiscais.
Vários partidos subscreveram o Manifesto, inclusive o PTB, a UDN, o PSD e o PCB de Luiz Carlos Prestes. Mas quando o senador Hamilton Nogueira apresentou o projeto, a Assembleia Nacional Constituinte de 1946 o rejeitou sob a alegação de inexistirem provas de discriminação racial no país. O TEN passou, então, a denunciar vários casos de discriminação, inclusive os da antropóloga Irene Diggs e da coreógrafa Katherine Dunham. A divulgação desses casos ajudou a criar as condições para a posterior promulgação de uma legislação fraca e ineficaz, conhecida como Lei Afonso Arinos.
Ciente da necessidade de ter parlamentares negros para defenderem no Congresso propostas que beneficiassem a população negra, o TEN incentivou e apoiou o lançamento de candidatos negros. Seu jornal Quilombo abriu espaço para candidatos negros de todos os partidos.
A atuação política do TEN manteve-se ao longo do tempo. Em 1966, por exemplo, ele lançou uma Declaração de Princípios em que se posicionou contra o colonialismo, reivindicando o mesmo posicionamento do governo brasileiro.
O 1º Congresso do Negro Brasileiro (1950)
O 1º Congresso do Negro Brasileiro se definiu como um evento de estudo e reflexão e, ainda, um acontecimento político de cunho popular, em contraste a outros certames como os Congressos Afro-Brasileiros de Recife (1934) e Salvador (1937), que tratavam o negro como um simples objeto de pesquisa.
Os intelectuais negros reunidos na Conferência preparatória ao 1º Congresso do Negro Brasileiro, em 1949, insistiam no princípio de políticas de igualdade racial que antes propuseram à Assembleia Constituinte de 1946. Nas palavras do escritor Fernando Góes:
“É tempo de todos olharem o negro como um ser humano, e não como simples curiosidade ou assunto para eruditas divagações científicas. Que se cuide da ciência, não é só louvável, como imprescindível. Mas que se assista ao desmoronamento e à degradação de uma raça, de braços cruzados, me parece um crime, e um crime tanto maior quando se sabe o que representou para a formação e o desenvolvimento econômico do nosso País.”
Os anais do 1º Congresso do Negro Brasileiro encontram-se publicados, parcialmente, no livro O negro revoltado, que Abdias Nascimento só conseguiu publicar em 1968.