Em tempos de ascensão do conservadorismo e da intolerância, é sempre bom relembrar àqueles cuja a vida e obra foram dedicadas à humanidade. Sobre Abdias Nascimento e Paulo Freire: eles eram amigos, se encontraram em diversas ocasiões no exílio (da Ditadura Militar no Brasil). A foto de @elisalarkinn é o registro do encontro em Guiné Bissau, em 1976, quando Abdias visitou o país meses após a vitória do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e a independência de Bissau. Paulo Freire estava lá em sua missão de educador, e encontro belíssimo, muitos à luz do luar da noite de Bissau, com jovens sedentos de aprendizagem e entusiasmados com a missão da educação no novo país que se construía. Não havia espaço físico para abrigar esses encontros, os jovens liam à luz de velas ou de lanternas (quando se tinha acesso às pilhas). Uma experiência muito rica. Abdias e Paulo Freire já haviam se encontrado em Nova York, e em Dar-es-Salaam em 1974 quando Abdias lá esteve para o 6º Congresso Pan-Africano.
“A pequena convivência com Paulo Freire certamente foi um dos pontos altos de minha vida, aqueles que agradeço todos os dias por me ter propiciado esta visita fugaz ao planeta Terra. Uma pessoa cuja maestria morava na doçura de seu trato, tanto com estudantes como com seus pares. Uma inteligência viva e dinâmica, uma personalidade inesquecível.Com permissão do autor, faço minhas as palavras do escritor e antropólogo baiano Ordep Serra, outra inteligência brasileira marcada pela ternura na militância pensada e praticada . Ordep compartilhou o seguinte depoimento:
Conheci pessoalmente Paulo Freire e embora tenha tido apenas rápidos encontros com ele tenho viva lembrança de seu jeito sereno, afetuoso, ponderado. Gravei no coração seu sorriso amável, sua simpatia. Muito me orgulho de ter sido monitor em um curso de alfabetização por ele programado em benefício dos pobres candangos que construíram Brasília, mas moravam em condições precárias nas favelas das cidades satélites.
Durou coisa de poucas semanas minha experiência de alfabetizador aprendiz em Taguatinga. Foi muito curta essa experiência porque sobreveio um estúpido golpe que deflagrou em nosso país a brutalidade de uma longa ditadura militar, obrigando Paulo Freire a exilar-se com sua família. Assim seu magnífico trabalho foi interrompido no Brasil.
Os voluntários que aqui se empenhavam alegremente na bela tarefa viram-se impedidos de continuá-la. A barbárie triunfava. Mas Paulo Freire prosseguiu longe de sua terra a sua magnífica jornada de educador. É hoje um nome respeitado no mundo inteiro, doutor honoris causa por 35 universidades, o terceiro autor mais citado na área de ciências humanas, o brasileiro de maior prestígio internacional.
Nos países que melhores resultados têm obtido na educação ele é celebrado, festejado. No Brasil aparvalhado de hoje, o governo lhe move guerra. O primeiro mandatário chama de lixo sua obra e chegou a tachá-lo de energúmeno. Não acredito que o desbocado presidente saiba o significado desta palavra. Por certo lhe disseram que se trata de um insulto e ele o incorporou sem mais a seu escasso vocabulário; afinal, o xingamento é uma das poucas formas de expressão que domina.
Do jeito como o aborrecem os livros, em que vê apenas “um montão de amontoado de coisas escritas”, é improvável que consulte dicionários. Em geral volumosos, os léxicos devem causar-lhe horror. Assim ele não percebe a ironia de sua diatribe. Energúmenos são possessos, descritos na literatura como gente transtornada, odiosa, violenta, agressiva, descontrolada, insana, dada a xingas, ameaças e ataques de fúria.
Chamar assim um homem tranquilo, ponderado e gentil como Paulo Freire é coisa de pessoa sem tino que sem querer se retrata em sua invectiva. É claro que esse insulto não atinge o sereno educador visado. Paulo Freire nunca teve qualquer ligação com brutais milicianos; nem ele nem pessoas de sua família conviveram jamais com gente dessa casta. Confiram sua biografia: ele nunca abrigou em seu gabinete gente suspeita de bandalheiras e assassinatos. Nenhum de seus filhos o fez. Nenhum escritório do crime teve com sua família qualquer ligação.
Paulo Freire era de todo alheio à violência característica dos energúmenos. Seu sonho era educar a gente pobre de seu país; nunca sonhou com uma guerra civil que eliminasse trinta mil patrícios. Por outro lado, sabe-se quem são os ídolos do detrator: Pinochet, tirano corrupto, homicida, cruel, detestado no mundo inteiro; o ditador Stroessener, célebre por sua violência carniceira e sua dedicação ao estupro de menores; o nefando Brilhante Ustra, um torturador convicto que não se pejava de levar crianças ao cárcere para ver seus pais brutalizados.
Quem se espelha nesse tipo de gente não tem como atingir um Paulo Freire, não tem como insultar um homem digno, uma mulher honrada. O desatinado que defende a ditadura e idolatra torturadores só tem uma possibilidade de infamar uma pessoa: elogiá-la. Um seu elogio é que seria comprometedor, é o que pode destruir uma reputação. O desatinado presidente deixa claro seu problema com livros, mostra a cada palavra que a leitura não está entre suas habilidades. É natural que uma pessoa assim, tão inimiga do conhecimento, deteste educadores. Se tivesse sido alfabetizado pelo método Paulo Freire aprenderia a refletir, a ponderar, a examinar criticamente o seu meio.
Não teria a dificuldade que mostra a cada pronunciamento em articular sentenças com alguma lógica; não maltrataria a línguas nativa nem seria exposto ao ridículo no mundo inteiro a cada vez que abre a boca. Um sinal de sua irreflexão é a tentativa bisonha que vive reiterando de atacar com menosprezo pessoas que se destacam no campo da inteligência: o resultado é sempre negativo, ele sempre sai diminuído e mesmo assim não aprende a lição, indo de fracasso a fracasso.
As canções magníficas de Chico Buarque lhe causam ódio; ele o ataca sem perceber o ridículo a que se expõe, revelando surdez musical incurável. A prosa aclamada de Chico ele desconhece, mas ataca assim mesmo, como ataca Caetano Veloso, ao tempo em que agride os cientistas mais renomados do Brasil — e julga que ninguém percebe sua ignorância patente. Uma menina sueca encanta o mundo por sua extraordinária lucidez, impõe-se ao respeito de povos inteiros, é acolhida por sábios e autoridades das mais acatadas; o mesquinho capitão a chama de pirralha e não percebe o quanto se diminui aos olhos do mundo. É triste.
Teria muito a aprender com o povo sagaz do nordeste, em particular com um de seus provérbios mordazes: “Não há quem cuspa pra cima que não lhe caia na cara”. Mas o apego à ignorância crassa faz com que pessoas desse naipe, que detesta educadores, se faça incapaz de aprendizagem”.