O Cais do Valongo é memória

Por Maria Eduarda Nascimento

“Tudo o que nós temos guardado a vida inteira.” Foi assim que Conceição Evaristo definiu a fala de Mãe Edelzuita de Oxaguiã, que aconteceu momentos antes na cerimônia. Eu não teria a ousadia de acrescentar nem polir nenhuma palavra, já que assim também entendi o que a Iyá disse. Alguns minutos após o início da cerimônia, Mãe Edelzuita, convidada ao evento, solicitou o direito de falar ao microfone no palco. E assim foi feito. As falas da mãe de santo, mesmo que numa pequena “quebra de protocolo” – como foram chamadas, elucidaram, para quem ainda não tinha entendido, o propósito daquela cerimônia. E o que nós, pessoas negras, em especial as mulheres negras, temos guardado a vida inteira: o cansaço de uma vida sem reconhecimento.

A Iyá demarcou seu protagonismo responsável pela viabilização da região do Cais do Valongo, porto de chegada dos nossos ancestrais sequestrados de África e escravizados por aqui. Ancestrais esses que receberam ebós e um Amalá para Xangô pelas mãos da própria. Reivindicou a importância das Iyalorixás na sociedade, já que é pelas mãos dessas mais velhas que “a mulher que não pode parir, toma um ebó e pari”, e “quem está no leito do hospital, se levanta”. Elas são responsáveis pela sobrevivência e força do povo preto, sempre foram, antes de qualquer medicina patenteada. Mãe Edelzuita termina seu discurso afirmando que negro, foi o branco quem inventou. Nós somos pretos.

Gosto de substituir a ideia do antirracismo pela projeção de vida futura do negro. Há, dentro de uma sociedade munida de necropolíticas racistas, algo mais subversivo do que imaginar um povo preto vivo no futuro? – Não só vivendo, mas vivendo dignamente. E só se pensa na construção política futura, visitando e conhecendo o passado. Isso é sankofa, e é também a filosofia dominante dentro das comunidades negras. A valorização do ancestral, a perpetuação oral do saber, a organização hierárquica… Pilares do candomblé e da capoeira, por exemplo. Isso é projetar vida.

A restituição de um patrimônio cultural, jogado ao sucateamento no anterior governo de extrema direita, e a instauração de um novo comitê de posse, que contempla coletivos e organizações negras comprometidas com a causa, fala do nosso passado e denuncia as mazelas coloniais aqui instauradas. Eu pouco sabia sobre o Cais do Valongo, e ainda sei pouco visto o necessário, mas sei que o racismo brasileiro atua no suprimento da memória ancestral e no apagamento da nossa história. O Cais do Valongo é memória, é movimento de resistência. Ter a presença de Ministras, do novíssimo Ministério da Igualdade Racial e do restaurado Ministério da Cultura, Anielle Franco e Margareth Menezes respectivamente, aponta para nortes de esperança com um Governo Federal que nos contempla. Em geral, a principal sensação é a de respiro.