Senhora encruzilhada: uma entrevista com Leda Maria Martins

No dia 28 de abril de 2022, sentada em um banco dentro do Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, a prof. Dra. Leda Maria Martins concedeu entrevista para equipe audiovisual responsável pela cobertura da passagem dos congado mineiro pelo museu a céu aberto, como parte das atividades em torno da exposição Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra no Inhotim. Entre os integrantes da equipe, composta por Brendon Campos e Thiago Pacheco, da comunicação do Inhotim, André Luís Nascimento e este autor, pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros. A mim coube  a tarefa de dialogar com Leda Maria Martins.

Local: Inhotim
Data: 28 de abril de 2022
Link para vídeo no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=EQq779TfN38&t=213s

Julio Ricardo Menezes Silva (JRMS): O que a senhora viu, o que a senhora sentiu nessa experiência neste domingo Páscoa?

Leda Maria Martins (LMM): Acho que foi muito belo. Essa participação da guarda de Moçambique e do reinado de marinhos, que são terra de quilombo, de fato, né? No termo de seu sentido mais prenélovo, original: são negros em terra de quilombo. Inhotim é terra de preto, né, querido? As grandes fazendas que eram essa terras num passado mais longínquo, a formação de minas em todos os sentidos, ela tem muito a ver com os povos africanos que foram trazidos pra cá, né? Especialmente para Minas Gerais. Então os negros africanos construíram esse Estado, em tudo. Quando você pensa a história de Minas Gerais, que é um dos estados mais importantes no Brasil, na história no Brasil, nós estamos falando de um sem número de insumos que foram trazidos como aporte civilizatório pelos negros, particularmente os povos Bantu. Então quando você pensa em Minas, na mineralogia, na arquitetura, na engenharia, nas artes plásticas, seja na escultura, seja pintura. Nas artes performáticas… O 1° teatro da América Latina é de Ouro Preto, de Minas Gerais, e na época, as companhias de teatro eram compostas por negros. Você pensa nas orquestras… Então, música, dança, arquitetura, engenharia, medicina, mineração, metalurgia e a religiosidade, o aporte religioso. A herança mineira é particularmente Bantu. Aliás, o Brasil quase todo é Bantu. São os povos Bantu que civilizam o Brasil, de norte a sul, de leste a oeste. Os reinados são tradição Bantu….

Eu mesma dei uma entrevista para o podcast aqui de Inhotim que se tratava de deslocamento. O que nós estamos vendo? Um deslocamento e um reassentamento dessa vez. É importante, primeiro: essa reapropriação dos negros por esse espaço. Ou seja, esse não pode ser um espaço para elite branca. E geralmente, a não ser em situações assim, os negros não entram em Inhotim. Inhotim, apesar de ser essa maravilha que é, um dos museus mais conceituados no mundo, ele não é uma espacialidade inclusiva…. e tendo Abdias aqui, quer dizer, um dos grandes ideais de Abdias, e isso não era quando ele se torna político-partidário, né? Não, isso vem desde os primórdios da atuação de Abdias. Abdias prima por uma atuação da inclusividade. A inclusividade da atuação negra, a inclusividade dos saberes negros, da inclusividade das epstemologias negras, das artes negras e da pessoa negra, do povo negro. Então, Abdias estar em Inhotim, olha bem, já é uma intrusão, porque esse não é um espaço inicialmente pensado para negros apesar de ser terra de negros. Originariamente isso é terra de preto, isso é terra de negro. Então, Abdias estar aqui com uma exposição que integra o Museu de Arte Negra que ele tanto idealizou como várias outras coisas, isso é muito interessante. Agora, isso não pode estar exilado da toda a população de Brumadinho. Aí eu te pergunto: o povo de Brumadinho tem vindo aqui? Porque é uma ótima oportunidade de nós criarmos pedagogia… de acrescer os conhecimentos. Seria muito interessante, Julio, que você trouxesse as escolas… Crianças e adolescentes de todos os níveis, sejam do ensino fundamental, ensino médio, das universidades. Tem várias faculdades ao redor de Brumadinho. Que elas viessem para conhecer a exposição e conhecer Abdias. E conhecer a história do Brasil.  E conhecer o papel do negro na história do Brasil conhecendo a história de Abdias como um dos mais ativos, né, personagens negros da hstoria do Brasil. Isto é importante! Não deixar que a exposição se transforme simplesmente em alguma coisa talvez no sentido mais antigo (no sentido) museológico, mas que a exposição se Abdias seja alguma coisa da ordem de um princípio motor de uma sínesi, que é o que funda o pensamento negro, né? A sínese, movimento, a retirar as coisas de lugar pré determinados. Então, eu acho que é importante que Abdias esteja aqui, que a exposição dele esteja aqui, isso pra mim é uma própria infusão no Inhotim. Isso tem que significar alguma coisa em relação ao próprio museu e parque Inhotim, mas também pode ser pensado como meio de expansão do movimento, sabe? Não como uma exposição que chega e vai embora, mas uma exposição que deixe lastro, rastros, sabe? Olha pra você ver: a ideia de trazer o povo de reinado é para que a exposição seja também tematizada por eles. Quando a exposição sair, alguma coisa de Abdias fica conosco e a exposição leva alguma coisa também nossa aqui das Minas.

JRMS: A senhora falou norte, sul, leste e oeste. A senhora falou também a respeito do teatro… eu queria entrar um pouquinho na sua vivência e falar um pouquinho de encruzilhada. Como foi isso na sua vida (LMM dá uma leve risada neste momento)? A senhora teve um trabalho acadêmico que é quase um ato heróico de conceituar algo que é tão difícil de ser conceituado, que são as encruzilhadas. O que tem de encruzilhada nessa exposição e como as encruzilhadas chegaram na sua vida? 

LMM: Você sabe que, na verdade, eu estava falando hoje quando a gente conversava off… naquele momento eu pensei que eu também devo a Abdias eu ter proposto as encruzilhadas como clave teórico metodológica. Porque era justamente quando eu fazia meu doutorado, e o doutorado era a comparação do teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos… e no Brasil eu pegava justamente como repertório o Teatro Experimental do Negro (TEN). O foco no Brasil era esse… então eu comparava com o teatro negro nos Estados Unidos nos anos 1960. E olha para você ver que coisa interessante… O Teatro Experimental do Negro no Brasil nos anos 1940, que esse teatro que Abdias funda, ideializa e impulsiona era muito mais radical já nos anos 1940 aqui do que lá. Então eu vou comparar o teatro negro aqui dos anos 1940, o TEN, com o teatro negro lá dos anos 1960. Aí eu consigo estabelecer um nível comparativo. 

E minha grande dificuldade não era as peças. Claro, a pesquisa foi dificultosa no Brasil porque não havia nada como há hoje, né? Se você pensar que estava fazendo essa tese em meados dos anos 1980, não tinha nada. Então eu passava horas e horas na biblioteca nacional fazendo pesquisa toda semana…. o que acontece? Enquanto eu elaborava, eu não encontrava as claves teórico conceituais e metodológicas. Eu já tinha um um grande conhecimento das teorias do teatro ocidental mas eu não achava nelas instrumentais. Tanto as peças do Teatro Experimental do Negro no Brasil quanto nos Estados Unidos me exigiam claves teóricas que não existiam. E aí que eu vou buscar de dentro das culturas negras a encruzilhada, que habita como epistemologia, seja os povos iorubá, seja os povos bantu. Ali eu vou explorar as encruzilhadas como esse lugar de cruzamento semiótico e vou começar a construir e elaborar um conceito que desde então, isso tem praticamente quase 40 anos, meados dos anos 1980, eu proponho encruzilhadas como clave teórica para se pensar de dentro das culturas negras epistemologicamente. Aí vai ser a primeira vez também que alguém vai utilizar Eux como clave, como princípio epistemológico do movimento…. tem essa grande sacada de trazer a encruzilhada como esse lugar… uma clave teórico metodológica. Eu não estou lidando ali especificamente como religião. É o que eu sempre digo: esses princípios de cognição que mantam a culturas negras, eles são pré, pré religião. Eles existem como os grandes princípios  que estruturam o pensamento. E daí as formas de pensamento. É daí que vão derivar todas as religiões, todas as artes, todas as cosmo percepções de mundo, né, assentadas nesses princípios estruturantes. A encruzilhada é um deles, a ancestralidade é outro, o tempo espiralar é outro, as oralituras são outros, né, são todos princípios que eu vou oferecer como chave teórico metodológica para se pensar, primeiro, a diversidade das culturas negras e das manifestações negras. Encruzilhadas surge ali, em meados dos anos 1980, né, e é um conceito que cria pernas… E eu digo: muitas vezes os autores aparecem na criação. E muita vai usar a encruzilhada e nem vai mencionar…  e ela criou pernas mesmo, né? E todo mundo vai usar encruzilhadas, né? (…) Eu faço muita questão de dizer: não estou usando como abstração ou como metáfora. O que eu proponho é uma clave teórica-epistemológica. E para se pensar epistemologicamente também as manifestações negras, que são muito variadas e diversas. Nós não somos unos, né? Nós somos muito diversos. Então, exige de nós também, acho que é necessário que a variedade e pluralidade das culturas negras… exijam de nós também aportes plurais para pensá-las, né? Repara só: quem poderia pensar, quando foi criado Inhotim, apesar disso aqui ser casa de negro… anteriormente ter sido (Leda solta uma gargalhada)… E que é trabalhada por negros, e que é formatada por negros,  quer dizer, algumas décadas…esse cruzamento que se dá agora também…  é resultado disso que você está ouvindo aqui (neste momento, ao fundo, o som dos Reinados do Sapê e XXXXX cantam para ir embora daquele território, quando o som invade nossos ouvidos e faz Leda referenciar o que escutava então) das insurgências dos reinados, da atuação de Abdias… olha pra você ver… nós estamos em reinado se reterritorializando nessas terras, assim também como Abdias. Então, é um cruzamento maravilhoso, querido. E nós podemos pensar encruzilhadas de vários modos: toda a estética de Abdias é centrada na tradição nagô iorubá, que ele reverencia, né? Olha para você ver (indica Leda Maria Martins, fazendo um gesto com o dedo indicador para atrás e por cima do ombro, de onde vem a força da voz e dos instrumentos, das oralituras): os bantos saudando os nagôs. Tudo cruzado!