O peso simbólico do 14 de março

*Por Julio Menezes Silva 

Hoje é dia de reverenciar três ancestrais e independentemente de quem você seja, caro leitor, e de quais são as suas orientações individuais, atente-se para o simbolismo da data do 14 de março. Explico: nasceram em 1914 Carolina Maria de Jesus, escritora, e Abdias Nascimento, professor, artista plástico e político oficialmente indicado ao Nobel da Paz. Morreram a vereadora Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes, em 2018, assassinados a mando de quem a polícia não sabe e o Estado brasileiro não quer descobrir. Por lei estadual no Rio de Janeiro, o dia 14 de março é Dia do Ativista pelo aniversário de Abdias, e Dia Marielle Franco de Luta contra o Genocídio das Mulheres Negras. Essas personalidades dedicaram a vida a resistir ao racismo brasileiro, o denunciaram ao mundo e deixaram mais evidentes o genocídio das populações negras.

Mas de que genocídio estamos falando? “O uso de medidas deliberantes e sistemáticas (morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo”. Essa definição está nas primeiras páginas do livro “O genocídio do Negro Brasieliro”, de Abdias Nascimento. Podemos afirmar que cada um deles – Carolina, Abdias e Marielle – foi atingido por diferentes facetas desse genocídio ao longo de suas vidas. Pagaram caro. Marielle levou quatro tiros na cabeça. Carolina morreu no ostracismo. Abdias não conseguiu uma sede para abrigar seu ambicioso projeto do Museu de Arte Negra (MAN). Mas no final das contas eles eram sementes e nós somos os seus frutos.

Se um dia o Brasil se livrar do racismo, certamente foi porque no caminho dessa construção houve um investimento pesado em educação de qualidade, desenvolvimento de pensamento crítico e ampliação do esforço de contar a história que a história não conta. Nós, negros e negras, somos responsáveis por reivindicar essa história, contar para os nossos filhos, pavimentar esse conhecimento para o futuro. “Nunca é tarde para voltar ao passado e apanhar o que ficou para trás” é o significado do provérbio Sankofa – cuja a imagem simboliza uma ave que olha para o próprio rabo. Outra interpretação possível para esse ideograma que compõe o conjunto de símbolos Adinkra, linguagem escrita dos povos Acã, é aprender com o passado, compreender o presente para construir o futuro. Eis aqui uma pequena colaboração para esse possível futuro e desejado.

Imagem criada pelo designer Luiz Carlos Gá para o evento que homenageou Carolina, Abdias e Marielle no 14 de março de 2019, no Centro de Artes da Maré, na favela Nova Holanda, Rio de Janeiro (RJ)

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977)

Escritora mineira, nascida em Sacramento (MG) em 14 de março de 1914. Após um episódio de racismo em sua cidade, no qual foi acusada injustamente de roubo e espancada até que o dinheiro aparecesse para que ela pudesse ser inocentada, mudou-se para São Paulo – onde chegou caminhado a pé. Estabeleceu-se na favela do Canindé as margens da marginal do Tietê. Teve três filhos. Cuidou deles sozinha, sem a presença paterna. A fome fazia parte do cotidiano de sua família. Catando papéis tirava o mínimo para o sustento. Dos papéis também vinham os pedaços de folha onde escrevia suas memórias, textos, poesias e seus sonhos. Um dia, o jornalista Audálio Dantas foi fazer uma matéria para a Folha de São Paulo sobre a vida na favela. Encontrou-se com Carolina Maria de Jesus, soube de sua história, leu seus textos. Publicou sua história no jornal. Dois anos mais tarde, em 1960, seus textos foram reunidos em Quarto do Despejo, livro que virou best-seller. Está hoje em 16 países, 46 idiomas. Vendeu quatro milhões de livros no exterior, 3 milhões no Brasil. É a mulher brasileira que foi mais publicada no mundo. Foi confrontada pelo stabilishment e o seu racismo estrutural. Carolina tronou-se uma referência de um “lugar de fala”, termo tão usado nos dias de hoje. Afinal Carolina não deixava que ninguém falar por ela. Morreu no ostracismo em 1977.

Marielle Franco (1979 – 2018)

Marielle Franco foi uma política brasileira. Formada em Sociologia (pela PUC-Rio) e com Mestrado em Administração Pública (pela UFF). Eleita Vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) no ano de 2016, com 46.502 votos. Enfrentou as milícias sem medo. Denunciou policiais corruptos. Defensora dos direitos humanos, coordenou, junto com Marcelo Freixo, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Ao longo do período em que atuou como vereadora apresentou 16 projetos de lei, especialmente pensados em políticas públicas para negros, mulheres e LGBTI. Mãe, mulher negra de favela, mãe, lésbica. Foi assassinada ao lado de seu motorista Anderson Gomes em um 14 de março, em crime ainda não desvendado. O caso talvez seja o mais relevante atualmente para se compreender o contexto da política nacional e de como funcionam os mecanismos de racismo no Brasil.

Abdias Nascimento (1914 – 2011)

Político, escritor, jornalista, teatrólogo, professor. Nasceu em Franca (SP). Fundador do Teatro Experimental do Negro, quando os negros e negras pisaram no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez, dirigindo, atuando e produzido uma peça e o protagonizando o papel principal. Ajudou a organizar o primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Fundou o jornal Quilombo. Foi curador do projeto do Museu de Arte Negra. Foi perseguido politicamente e preso diversas vezes em sua vida por resistir ao racismo. Viveu 13 anos em exílio durante a Ditadura Militar no Brasil. Voltou ao País e foi o primeiro parlamentar negro da Câmara dos Deputados. Fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Participou da promulgação da Constituição Brasileira em 1988. Defensor da democracia e dos Direitos Humanos das populações negras, foi oficialmente indicado ao Nobel da Paz. Autor de “O Genocídio do Negro Brasileiro”e “O Quilombismo”, clássicos do pensamento social brasileiro. Foi secretário de Estado, Senador da República. Morreu aos 97 anos e é considerado uma das grandes personalidades brasileiras do século XX

UM RELATO PESSOAL

Revistando algumas anotações pessoais que mantenho em diários, cheguei ao dia 14 de março de 2018. Eis aqui alguns dos apontamentos registrados naquele dia.

“São 5h53 da manhã… No Fórum Social Mundial, observo, milhares de pessoas afinadas com o “mundo melhor é possível”. Neste hotel, que fica ao lado do Instituto Goethe de Salvador, vários turistas nacionais e internacionais dividem espaço. Aqui no looby, antes das seis, já há uma movimentação. Fico pensando no longo dia que terei pela frente e de que maneira posso contribuir para um mundo melhor. Acho que o melhor caminho a tal passa por mim, pelo autoconhecimento. Talvez me conhecendo melhor, melhor de mim posso oferecer ao mundo: dons, talentos, amor, compaixão. O que mais este mundo precisa?

Foi com esse espírito de esperança que me lancei naquele 14 de março de 2018. Com fé na humanidade, meditando e escrevendo – em um ato de prazer e fé.

“Animados, enquanto os hospedes tomam café, estão os funcionários do hotel, conversando com o sotaque inconfundível dessa terra, com sorrisos pouco comum para este horário, e um bom-humor inconcebível, pelo menos para mim, aquela hora do dia. E acredito que esta turma não deve ter levantado da cama antes das quatro da manhã, como é comum em nosso país, principalmente para os trabalhadores que moram afastados dos grandes centros. Que a luz e o bom humor norteiem o dia de hoje, e que eu possa ter uma noite de sono um pouco melhor do que a que tive – tivemos – hoje. Que seja assim!

Fechei o caderno. Tomei café da manhã com a professora Elisa Larkin Nascimento e o escritor Milsoul Santos. Saímos para o Teatro Martim Gonçalves, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO) e parceiros realizariam o primeiro de uma série de três eventos em torno do lançamento da nova edição do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, de Abdias Nascimento. Poesia, música, pensamento crítico, esperança. O teatro pulsava, foi lindo. À tarde visitei a UFBA / Ondina que pulsava ainda mais: gente de várias partes do mundo, diferentes culturas, era o povo na rua cantando como uma reza, um ritual.   

À noite, chegou a notícia da morte de Marielle. Eu já estava deitado, preparando-me para dormir. Pensei: “fudeu!”. Permaneci estático. A única reação possível foi escrever no diário. E lá está:  

“Como é habitar um corpo afro-brasileiro que por destino “caiu” na cidade do Rio de Janeiro, que por destino chegou até aqui? O que me motiva a escrever é este turbilhão de acontecimentos simultâneos que fazem parte de nossa vida… A morte da vereadora Marielle Franco, do Psol, assassinada em circunstâncias ainda duvidosas… Eu votei nela nas últimas eleições. Mulher negra, jovem. Parecia para mim séria e honesta. Hoje sei de seu assassinato, no Estácio, bairro onde nasceu o samba. Eu fico indignado com a violência na cidade, apesar de já ter me “acostumado” a essa realidade no Rio.

De salvador, onde passei o dia em compromissos dentro do âmbito do Fórum Social Mundial 2018, que propõe “um mundo melhor é possível”, discutimos, agimos, poetizamos, criamos atividades em torno do “Genocídio do Negro Brasileiro”, livro de Abdias. As discussões giravam em torno justamente do genocídio ser além da morte física, mas esta quando chega, é fatal. Literalmente nos faz perder a esperança de tudo.

Eis que surge o Flamengo, com dois gols de jovem negro, de São Gonçalo, o pior IDH do Rio, um dos piores do Brasil, que faz dois gols contra o Emelec, fora de casa pela Libertadores. Aí compreendo a plenitude da vida: indignação, revolta, felicidade, amor, tristeza, raiva. Tudo isso habita esse corpo negro enquanto escrevo estas palavras, à meia noite, sentado em uma privada de hotel, com a porta (do banheiro) fechada para não incomodar a minha companheira que já está no décimo sono. A vida é meio sei lá, bicho. Eu só peço a Deus que me livre do mal. Amém!”.

O resto é história. 

Viva o 14 de março! Que a data seja celebrada pelo protagonismo dessas personalidades e de outras tantas que fazem a diferença, em vida, para um mundo melhor. Queremos mais Carolinas, mais Nascimentos. Queremos #justiçapormarielle! A pergunta que fica é: quem mandou matar Marielle? 

*Julio Menezes Silva é jornalista, artista em formação. É coordenador de Comunicação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e integrante do Fórum Permanente Pela Igualdade Racial.

O peso simbólico do 14 de março

*Por Julio Menezes Silva (IPEAFRO/ FOPIR)

Hoje é dia de reverenciar três ancestrais e independentemente de quem você seja, caro leitor, e de quais são as suas orientações individuais, atente-se para o simbolismo da data do 14 de março. Explico: nasceram em 1914 Carolina Maria de Jesus, escritora, e Abdias Nascimento, professor, artista plástico e político oficialmente indicado ao Nobel da Paz. Morreram a vereadora Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes, em 2018, assassinados a mando de quem a polícia não sabe e o Estado brasileiro não quer descobrir. Por lei estadual no Rio de Janeiro, o dia 14 de março é Dia do Ativista pelo aniversário de Abdias, e Dia Marielle Franco de Luta contra o Genocídio das Mulheres Negras. Essas personalidades dedicaram a vida a resistir ao racismo brasileiro, o denunciaram ao mundo e deixaram mais evidentes o genocídio das populações negras.

Mas de que genocídio estamos falando? “O uso de medidas deliberantes e sistemáticas (morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo”. Essa definição está nas primeiras páginas do livro “O genocídio do Negro Brasieliro”, de Abdias Nascimento. Podemos afirmar que cada um deles – Carolina, Abdias e Marielle – foi atingido por diferentes facetas desse genocídio ao longo de suas vidas. Pagaram caro. Marielle levou quatro tiros na cabeça. Carolina morreu no ostracismo. Abdias não conseguiu uma sede para abrigar seu ambicioso projeto do Museu de Arte Negra (MAN). Mas no final das contas eles eram sementes e nós somos os seus frutos.

Se um dia o Brasil se livrar do racismo, certamente foi porque no caminho dessa construção houve um investimento pesado em educação de qualidade, desenvolvimento de pensamento crítico e ampliação do esforço de contar a história que a história não conta. Nós, negros e negras, somos responsáveis por reivindicar essa história, contar para os nossos filhos, pavimentar esse conhecimento para o futuro. “Nunca é tarde para voltar ao passado e apanhar o que ficou para trás” é o significado do provérbio Sankofa – cuja a imagem simboliza uma ave que olha para o próprio rabo. Outra interpretação possível para esse ideograma que compõe o conjunto de símbolos Adinkra, linguagem escrita dos povos Acã, é aprender com o passado, compreender o presente para construir o futuro. Eis aqui uma pequena colaboração para esse possível futuro e desejado.

Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977)

Escritora mineira, nascida em Sacramento (MG) em 14 de março de 1914. Após um episódio de racismo em sua cidade, no qual foi acusada injustamente de roubo e espancada até que o dinheiro aparecesse para que ela pudesse ser inocentada, mudou-se para São Paulo – onde chegou caminhado a pé. Estabeleceu-se na favela do Canindé as margens da marginal do Tietê. Teve três filhos. Cuidou deles sozinha, sem a presença paterna. A fome fazia parte do cotidiano de sua família. Catando papéis tirava o mínimo para o sustento. Dos papéis também vinham os pedaços de folha onde escrevia suas memórias, textos, poesias e seus sonhos. Um dia, o jornalista Audálio Dantas foi fazer uma matéria para a Folha de São Paulo sobre a vida na favela. Encontrou-se com Carolina Maria de Jesus, soube de sua história, leu seus textos. Publicou sua história no jornal. Dois anos mais tarde, em 1960, seus textos foram reunidos em Quarto do Despejo, livro que virou best-seller. Está hoje em 16 países, 46 idiomas. Vendeu quatro milhões de livros no exterior, 3 milhões no Brasil. É a mulher brasileira que foi mais publicada no mundo. Foi confrontada pelo stabilishment e o seu racismo estrutural. Carolina tronou-se uma referência de um “lugar de fala”, termo tão usado nos dias de hoje. Afinal Carolina não deixava que ninguém falar por ela. Morreu no ostracismo em 1977.

Marielle Franco (1979 – 2018)

Marielle Franco foi uma política brasileira. Formada em Sociologia (pela PUC-Rio) e com Mestrado em Administração Pública (pela UFF). Eleita Vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) no ano de 2016, com 46.502 votos. Enfrentou as milícias sem medo. Denunciou policiais corruptos. Defensora dos direitos humanos, coordenou, junto com Marcelo Freixo, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Ao longo do período em que atuou como vereadora apresentou 16 projetos de lei, especialmente pensados em políticas públicas para negros, mulheres e LGBTI. Mãe, mulher negra de favela, mãe, lésbica. Foi assassinada ao lado de seu motorista Anderson Gomes em um 14 de março, em crime ainda não desvendado. O caso talvez seja o mais relevante atualmente para se compreender o contexto da política nacional e de como funcionam os mecanismos de racismo no Brasil.

Abdias Nascimento (1914 – 2011)

Político, escritor, jornalista, teatrólogo, professor. Nasceu em Franca (SP). Fundador do Teatro Experimental do Negro, quando os negros e negras pisaram no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez, dirigindo, atuando e produzido uma peça e o protagonizando o papel principal. Ajudou a organizar o primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Fundou o jornal Quilombo. Foi curador do projeto do Museu de Arte Negra. Foi perseguido politicamente e preso diversas vezes em sua vida por resistir ao racismo. Viveu 13 anos em exílio durante a Ditadura Militar no Brasil. Voltou ao País e foi o primeiro parlamentar negro da Câmara dos Deputados. Fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Participou da promulgação da Constituição Brasileira em 1988. Defensor da democracia e dos Direitos Humanos das populações negras, foi oficialmente indicado ao Nobel da Paz. Autor de “O Genocídio do Negro Brasileiro”e “O Quilombismo”, clássicos do pensamento social brasileiro. Foi secretário de Estado, Senador da República. Morreu aos 97 anos e é considerado uma das grandes personalidades brasileiras do século XX

UM RELATO PESSOAL

Revistando algumas anotações pessoais que mantenho em diários, cheguei ao dia 14 de março de 2018. Eis aqui alguns dos apontamentos registrados naquele dia.

“São 5h53 da manhã… No Fórum Social Mundial, observo, milhares de pessoas afinadas com o “mundo melhor é possível”. Neste hotel, que fica ao lado do Instituto Goethe de Salvador, vários turistas nacionais e internacionais dividem espaço. Aqui no looby, antes das seis, já há uma movimentação. Fico pensando no longo dia que terei pela frente e de que maneira posso contribuir para um mundo melhor. Acho que o melhor caminho a tal passa por mim, pelo autoconhecimento. Talvez me conhecendo melhor, melhor de mim posso oferecer ao mundo: dons, talentos, amor, compaixão. O que mais este mundo precisa?

Foi com esse espírito de esperança que me lancei naquele 14 de março de 2018. Com fé na humanidade, meditando e escrevendo – em um ato de prazer e fé.

“Animados, enquanto os hospedes tomam café, estão os funcionários do hotel, conversando com o sotaque inconfundível dessa terra, com sorrisos pouco comum para este horário, e um bom-humor inconcebível, pelo menos para mim, aquela hora do dia. E acredito que esta turma não deve ter levantado da cama antes das quatro da manhã, como é comum em nosso país, principalmente para os trabalhadores que moram afastados dos grandes centros. Que a luz e o bom humor norteiem o dia de hoje, e que eu possa ter uma noite de sono um pouco melhor do que a que tive – tivemos – hoje. Que seja assim!

Fechei o caderno. Tomei café da manhã com a professora Elisa Larkin Nascimento e o escritor Milsoul Santos. Saímos para o Teatro Martim Gonçalves, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO) e parceiros realizariam o primeiro de uma série de três eventos em torno do lançamento da nova edição do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, de Abdias Nascimento. Poesia, música, pensamento crítico, esperança. O teatro pulsava, foi lindo. À tarde visitei a UFBA / Ondina que pulsava ainda mais: gente de várias partes do mundo, diferentes culturas, era o povo na rua cantando como uma reza, um ritual.   

À noite, chegou a notícia da morte de Marielle. Eu já estava deitado, preparando-me para dormir. Pensei: “fudeu!”. Permaneci estático. A única reação possível foi escrever no diário. E lá está:  

“Como é habitar um corpo afro-brasileiro que por destino “caiu” na cidade do Rio de Janeiro, que por destino chegou até aqui? O que me motiva a escrever é este turbilhão de acontecimentos simultâneos que fazem parte de nossa vida… A morte da vereadora Marielle Franco, do Psol, assassinada em circunstâncias ainda duvidosas… Eu votei nela nas últimas eleições. Mulher negra, jovem. Parecia para mim séria e honesta. Hoje sei de seu assassinato, no Estácio, bairro onde nasceu o samba. Eu fico indignado com a violência na cidade, apesar de já ter me “acostumado” a essa realidade no Rio.

De salvador, onde passei o dia em compromissos dentro do âmbito do Fórum Social Mundial 2018, que propõe “um mundo melhor é possível”, discutimos, agimos, poetizamos, criamos atividades em torno do “Genocídio do Negro Brasileiro”, livro de Abdias. As discussões giravam em torno justamente do genocídio ser além da morte física, mas esta quando chega, é fatal. Literalmente nos faz perder a esperança de tudo.

Eis que surge o Flamengo, com dois gols de jovem negro, de São Gonçalo, o pior IDH do Rio, um dos piores do Brasil, que faz dois gols contra o Emelec, fora de casa pela Libertadores. Aí compreendo a plenitude da vida: indignação, revolta, felicidade, amor, tristeza, raiva. Tudo isso habita esse corpo negro enquanto escrevo estas palavras, à meia noite, sentado em uma privada de hotel, com a porta (do banheiro) fechada para não incomodar a minha companheira que já está no décimo sono. A vida é meio sei lá, bicho. Eu só peço a Deus que me livre do mal. Amém!”.

O resto é história. 

Viva o 14 de março! Que a data seja celebrada pelo protagonismo dessas personalidades e de outras tantas que fazem a diferença, em vida, para um mundo melhor. Queremos mais Carolinas, mais Nascimentos. Queremos #justiçapormarielle! A pergunta que fica é: quem mandou matar Marielle? 

*Julio Menezes Silva é jornalista, artista em formação. É coordenador de Comunicação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e integrante do Fórum Permanente Pela Igualdade Racial.

HISTÓRIA: QUANDO ABDIAS ENCONTROU-SE COM PAULO

Paulo Freire e Abdias Nascimento em Guiné Bissau no ano de 1976. Foto: Elisa Larkin Nascimento

Em tempos de ascensão do conservadorismo e da intolerância, é sempre bom relembrar àqueles cuja a vida e obra foram dedicadas à humanidade.  Sobre Abdias Nascimento e Paulo Freire: eles eram amigos, se encontraram em diversas ocasiões no exílio (da Ditadura Militar no Brasil). A foto de @elisalarkinn é o registro do encontro em Guiné Bissau, em 1976, quando Abdias visitou o país meses após a vitória do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e a independência de Bissau. Paulo Freire estava lá em sua missão de educador, e encontro belíssimo, muitos à luz do luar da noite de Bissau, com jovens sedentos de aprendizagem e entusiasmados com a missão da educação no novo país que se construía. Não havia espaço físico para abrigar esses encontros, os jovens liam à luz de velas ou de lanternas (quando se tinha acesso às pilhas). Uma experiência muito rica. Abdias e Paulo Freire já haviam se encontrado em Nova York, e em Dar-es-Salaam em 1974 quando Abdias lá esteve para o 6º Congresso Pan-Africano.

 
Paulo Freire narra esses encontros no prefácio que ele escreveu – e que publicamos no manuscrito dele, de próprio punho – para o livro de poesia de Abdias, Axés do Sangue e da Esperança: Orikis (1983), esgotadíssimo, porém disponível para leitura online em nosso site
 
“Tive a honra de ser recebida por ele e a esposa, na casa dele em Perdizes, em 1981, quando lá estávamos tratando da fundação do IPEAFRO na PUC-SP. Foi nessa visita que Abdias lhe deixou os originais da poesia e lhe propus fazer o prefácio, o que ele aceitou com a generosidade que lhe era peculiar” conta a prof. Dra. Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e diretora do IPEAFRO.
 
RELATO PESSOAL, por Elisa Larkin Nascimento e Ordep Serra:

“A pequena convivência com Paulo Freire certamente foi um dos pontos altos de minha vida, aqueles que agradeço todos os dias por me ter propiciado esta visita fugaz ao planeta Terra. Uma pessoa cuja maestria morava na doçura de seu trato, tanto com estudantes como com seus pares. Uma inteligência viva e dinâmica, uma personalidade inesquecível.Com permissão do autor, faço minhas as palavras do escritor e antropólogo baiano Ordep Serra, outra inteligência brasileira marcada pela ternura na militância pensada e praticada . Ordep compartilhou o seguinte depoimento:

Conheci pessoalmente Paulo Freire e embora tenha tido apenas rápidos encontros com ele tenho viva lembrança de seu jeito sereno, afetuoso, ponderado. Gravei no coração seu sorriso amável, sua simpatia. Muito me orgulho de ter sido monitor em um curso de alfabetização por ele programado em benefício dos pobres candangos que construíram Brasília, mas moravam em condições precárias nas favelas das cidades satélites.

Durou coisa de poucas semanas minha experiência de alfabetizador aprendiz em Taguatinga. Foi muito curta essa experiência porque sobreveio um estúpido golpe que deflagrou em nosso país a brutalidade de uma longa ditadura militar, obrigando Paulo Freire a exilar-se com sua família. Assim seu magnífico trabalho foi interrompido no Brasil.

Os voluntários que aqui se empenhavam alegremente na bela tarefa viram-se impedidos de continuá-la. A barbárie triunfava. Mas Paulo Freire prosseguiu longe de sua terra a sua magnífica jornada de educador. É hoje um nome respeitado no mundo inteiro, doutor honoris causa por 35 universidades, o terceiro autor mais citado na área de ciências humanas, o brasileiro de maior prestígio internacional.

Nos países que melhores resultados têm obtido na educação ele é celebrado, festejado. No Brasil aparvalhado de hoje, o governo lhe move guerra. O primeiro mandatário chama de lixo sua obra e chegou a tachá-lo de energúmeno. Não acredito que o desbocado presidente saiba o significado desta palavra. Por certo lhe disseram que se trata de um insulto e ele o incorporou sem mais a seu escasso vocabulário; afinal, o xingamento é uma das poucas formas de expressão que domina.

Do jeito como o aborrecem os livros, em que vê apenas “um montão de amontoado de coisas escritas”, é improvável que consulte dicionários. Em geral volumosos, os léxicos devem causar-lhe horror. Assim ele não percebe a ironia de sua diatribe. Energúmenos são possessos, descritos na literatura como gente transtornada, odiosa, violenta, agressiva, descontrolada, insana, dada a xingas, ameaças e ataques de fúria.

Chamar assim um homem tranquilo, ponderado e gentil como Paulo Freire é coisa de pessoa sem tino que sem querer se retrata em sua invectiva. É claro que esse insulto não atinge o sereno educador visado. Paulo Freire nunca teve qualquer ligação com brutais milicianos; nem ele nem pessoas de sua família conviveram jamais com gente dessa casta. Confiram sua biografia: ele nunca abrigou em seu gabinete gente suspeita de bandalheiras e assassinatos. Nenhum de seus filhos o fez. Nenhum escritório do crime teve com sua família qualquer ligação.

Paulo Freire era de todo alheio à violência característica dos energúmenos. Seu sonho era educar a gente pobre de seu país; nunca sonhou com uma guerra civil que eliminasse trinta mil patrícios. Por outro lado, sabe-se quem são os ídolos do detrator: Pinochet, tirano corrupto, homicida, cruel, detestado no mundo inteiro; o ditador Stroessener, célebre por sua violência carniceira e sua dedicação ao estupro de menores; o nefando Brilhante Ustra, um torturador convicto que não se pejava de levar crianças ao cárcere para ver seus pais brutalizados.

Quem se espelha nesse tipo de gente não tem como atingir um Paulo Freire, não tem como insultar um homem digno, uma mulher honrada. O desatinado que defende a ditadura e idolatra torturadores só tem uma possibilidade de infamar uma pessoa: elogiá-la. Um seu elogio é que seria comprometedor, é o que pode destruir uma reputação. O desatinado presidente deixa claro seu problema com livros, mostra a cada palavra que a leitura não está entre suas habilidades. É natural que uma pessoa assim, tão inimiga do conhecimento, deteste educadores. Se tivesse sido alfabetizado pelo método Paulo Freire aprenderia a refletir, a ponderar, a examinar criticamente o seu meio.

Não teria a dificuldade que mostra a cada pronunciamento em articular sentenças com alguma lógica; não maltrataria a línguas nativa nem seria exposto ao ridículo no mundo inteiro a cada vez que abre a boca. Um sinal de sua irreflexão é a tentativa bisonha que vive reiterando de atacar com menosprezo pessoas que se destacam no campo da inteligência: o resultado é sempre negativo, ele sempre sai diminuído e mesmo assim não aprende a lição, indo de fracasso a fracasso.

As canções magníficas de Chico Buarque lhe causam ódio; ele o ataca sem perceber o ridículo a que se expõe, revelando surdez musical incurável. A prosa aclamada de Chico ele desconhece, mas ataca assim mesmo, como ataca Caetano Veloso, ao tempo em que agride os cientistas mais renomados do Brasil — e julga que ninguém percebe sua ignorância patente. Uma menina sueca encanta o mundo por sua extraordinária lucidez, impõe-se ao respeito de povos inteiros, é acolhida por sábios e autoridades das mais acatadas; o mesquinho capitão a chama de pirralha e não percebe o quanto se diminui aos olhos do mundo. É triste.

Teria muito a aprender com o povo sagaz do nordeste, em particular com um de seus provérbios mordazes: “Não há quem cuspa pra cima que não lhe caia na cara”. Mas o apego à ignorância crassa faz com que pessoas desse naipe, que detesta educadores, se faça incapaz de aprendizagem”.